“Tolerância mútua é uma necessidade em todos os tempos e para todas as raças. Mas tolerância não significa aceitar o que se tolera”.
Gandhi
“Julgar que há coisas intoleráveis é dar provas de intolerância?” Ou, de outra forma: “Ser tolerante é tolerar tudo?” Em ambos os casos, a resposta, evidentemente, é não, pelo (Publicado em freemason.pt) menos se queremos que a tolerância seja uma virtude. Quem tolerasse a violação, a tortura, o assassinato deveria ser considerado virtuoso? Quem veria nesta tolerância do pior uma disposição louvável? Mas se a resposta não pode ser senão negativa, a argumentação não deixa de levantar um certo número de problemas, que são definições e limitações e verdades que importa responder, mas a resposta vale apenas pelos argumentos.
O homem é um ser social e possui uma individualidade. Não é perfeito e portanto, sob diversos aspectos, limitado. Precisa viver consigo mesmo e com os outros, porém, as leis pessoais não são as mesmas que as sociais. Pelo valor que é a individualidade, alguns homens são melhores em certos aspectos; outros, em outros, e assim a sociedade se completa e a vida social é possível. Mas a moeda tem outra face e o facto das pessoas diferirem pode gerar atritos de valores. Os limites das pessoas também são diferentes. Neste ponto começa o limite entre o pessoal e o social. Existem situações que podem ser ignoradas, passíveis de serem aceitas, em prol da sociedade, do bem comum. Mas o limite não é fixo, pode variar muito. Queremos que este limite fosse mais elástico, e de certo modo o é. O limite da tolerância tem por um lado a manutenção da individualidade e por outro a inclusão do individual no social. Se isto não ocorrer, alguns perdem sua individualidade e outros são excluídos e preferem se isolar do convívio social.
“A nossa liberdade é o preço da nossa existência”, segundo Rodríguez-Rosado. Existimos como seres humanos livres. Se não tivéssemos liberdade, nossa existência com certeza não seria da mesma forma. O problema da tolerância só se põe em questões de opinião. Por isso se põe tão frequentemente, ou mesmo quase sempre.
A palavra tolerância, provém da palavra Tolerare que significa etimologicamente sofrer ou suportar pacientemente. Tolerância, do latim, tolerantia, segundo o sentido semântico, é a qualidade de quem é tolerante, complacente, condescendente, indulgente. O conceito tolerância exprime-se numa aceitação assimétrica de poder:
Tolera-se aquilo que se apresenta como distinto da maneira de agir, pensar e sentir de quem tolera;
Quem tolera está, em princípio numa posição de superioridade em relação aquele que é tolerado. Neste sentido pode ou não tolerar.
A tolerância pressupõe sempre um padrão de referência, as margens de tolerância e aquilo que se assume como intolerável. Isto significa que tolerância é a disposição em se admitir nos outros um modo de agir, uma maneira de ser, uma maneira de pensar, um modo de crer, particularmente em questões políticas e religiosas.
Tolerância teve no passado, e com sentido negativo, a função de designar as atitudes permissivas por parte das autoridades diante de atitudes sociais impróprias ou erradas. Hoje em dia, pode ser considerada uma virtude e se apresenta como algo positivo. Esta é uma atitude social ou individual que nos leva não somente a reconhecer nos demais o direito a ter opiniões diferentes, mas também de as difundir e manifestar pública ou privadamente.
Tomás de Aquino diz que a tolerância é o mesmo que a paciência. E a paciência é justamente o bom humor ou o amor que nos faz suportar as coisas ruins ou desagradáveis. Ao tratar do tema da justiça, o Aquinate também nos indica que “a paciência – ou tolerância – é perfeita nas suas obras, no que respeita ao sofrimento dos males, em relação aos quais ela não só exclui a justa vingança, que a justiça também exclui; nem só o ódio, como a caridade; nem só a ira, como a mansidão, mas também a tristeza desordenada, raiz de todos os males que acabamos de enumerar. E por isso, é mais perfeita e maior, porque, na matéria em questão, extirpa (Publicado em freemason.pt) a raiz. Mas não é, absolutamente falando, mais perfeita que as outras virtudes, porque a fortaleza não suporta os sofrimentos sem se perturbar, o que também o faz a paciência, mas também os afronta, quando necessário. Por isso, quem é forte é paciente, mas não, vice-versa. Pois a paciência é parte da fortaleza.”
A diferença de abordagem, seja ela histórica ou dentro dos diferentes campos das ciências particulares, permite-nos observar que dentro das humanidades, a tolerância diz respeito ao ser humano ou à sociedade, enquanto que nas ciências exactas, está baseada em leis físico-químicas e biológicas. Alguns exemplos ilustram o uso da palavra (in)tolerância ao longo dos séculos.
No final do séc. XVI, muito se falou da tolerância religiosa, eclesiástica ou teológica. Hoje em dia também se tolera – pacientemente – em pontos que não são essenciais de uma determinada doutrina mesmo que seja em detrimento da mesma, mas para uma melhor convivência social.
O que normalmente tem acontecido e com muita frequência na história da humanidade é o predomínio, às vezes quase absoluto, da intolerância. O homem tem uma propensão irresistível para ser intolerante. Desde os primórdios da existência do homem sobre a terra o que se tem visto é a intransigência religiosa e política. Até hoje há homens que se matam por causa da religião. O que se vê na política é intransigência em torno das ideias, das opiniões, dos governos.
Costumamos actuar, como diz o provérbio, “com dois pesos e duas medidas”: Tendemos a ser muito complacentes com os desvios da nossa conduta e implacáveis com os outros: não lhes damos o tempo necessário para mudar. De facto, abandonar um mau costume e actuar de modo completamente oposto é uma tarefa que exige esforço e pode durar meses ou anos… E, quanto aos outros, exigimos que tudo ocorra no mesmo instante, esquecendo que as coisas têm seu ritmo natural.
O que leva duas pessoas a entrarem em discórdia? A invasão do direito alheio, o ultrapassar o limite de tolerância, a incapacidade de compreensão mútua ou própria, a falta de empatia, a nossa própria natureza, o nosso temperamento. Somos limitados, e isto se manifesta também no modo tosco com que nos relacionamos muitas vezes com as pessoas.
Por iniciativa da UNESCO, as Nações Unidas proclamaram 1995 o Ano Internacional da Tolerância.
O Ano Internacional para a Tolerância evidenciou uma virtude individual que aparece cada vez mais como uma necessidade política e jurídica para a coexistência pacífica. Aceitação e apreço da diversidade, capacidade de viver e deixar viver os outros, capacidade de ter as suas próprias convicções aceitando que os outros tenham as suas, capacidade de gozar dos seus direitos e liberdades sem infringir os do próximo – a tolerância foi sempre considerada como uma virtude. Também é o fundamento da democracia e dos direitos humanos. A intolerância nas sociedades multiétnicas, multirreligiosas ou multiculturais conduz à violação dos Direitos Humanos, à violência e à guerra.
Mas, como conquistar a Tolerância mais de cinquenta anos após os signatários da Carta das Nações Unidas terem decidido “praticar a Tolerância e viver em paz uns com os outros, num espírito de boa vizinhança”, e mais de duzentos anos após Voltaire ter travado uma batalha filosófica apaixonada contra a intolerância, o sectarismo e a injustiça que a legitimava?
A Tolerância, o multiculturalismo, a diversidade universal, o diálogo religioso e cultural foram temas de debate através de meia centena de encontros nacionais, regionais e internacionais ao longo do ano de 1995. Estes trabalhos tiveram como ponto culminante a Declaração de princípios sobre a Tolerância, adoptada e assinada em 16 de Novembro de 1995, dia da celebração do quinquagésimo aniversário da adopção da Constituição da UNESCO. Os signatários da Declaração afirmam que a tolerância não é só um princípio moral mas também uma necessidade política e jurídica para os indivíduos, os grupos e os Estados. Situando a tolerância em (Publicado em freemason.pt) relação aos instrumentos internacionais que dizem respeito aos direitos humanos e que se estabeleceram desde há 50 anos, sublinha-se que os Estados deveriam elaborar, se necessário, novas normas legislativas com o fim de garantir a igualdade de tratamento e oportunidades aos diferentes grupos e indivíduos que formam a sociedade.
A proclamação de um Ano internacional para a Tolerância teve por objectivo imediato sensibilizar os políticos e a opinião pública para os perigos ligados às formas contemporâneas de intolerância. Desde o final da guerra fria, assistia-se a um aumento constante de conflitos de origem social, religiosa e cultural. Com demasiada frequência os referidos conflitos degeneraram em guerra, frequentemente violaram-se os direitos humanos e sacrificaram- se muitas vidas.
Hoje, a intolerância progride em todas a partes e mata em grande escala e coloca numerosas questões de índole moral. Sempre foi assim. Mas, a partir dos anos 90 a intolerância coloca também questões de carácter político, considerando cada vez mais uma séria ameaça para a democracia, a paz e a segurança.
E, contudo, quando se fala de intolerância, as perguntas são mais numerosas do que as respostas.
A intolerância tem estado sempre presente na história humana. Provocou a maioria das guerras, as perseguições religiosas e as confrontações ideológicas violentas. É, pois, inerente à natureza humana? É iniludível? Pode aprender-se a tolerância? Como é que as democracias podem quebrar a intolerância sem fragilizar as liberdades individuais? Como podem estabelecer códigos de comportamento individuais sem legislar e sem controlar o comportamento dos seus cidadãos? Como pode instaurar-se um multiculturalismo pacífico?
Se, como crêem Platão, Estaline ou João Paulo II, é a verdade que comanda, não existe outra virtude além da submissão à verdade. E porque ela é a mesma para todos, todos devem submeter-se igualmente aos mesmos valores, às mesmas regras, aos mesmos imperativos: uma mesma verdade para todos, e portanto uma mesma moral, uma mesma política, uma mesma religião! Fora da verdade não existe salvação, fora da Igreja ou do Partido não existe verdade… O dogmatismo prático, que pensa o valor como uma verdade, conduz assim à boa consciência, à suficiência, à rejeição ou desprezo do outro – à intolerância.
O problema da tolerância só se põe em questões de opinião. Por isso se põe tão frequentemente, ou mesmo quase sempre. Uma tal tolerância universal seria, por certo, moralmente condenável: porque esqueceria as vítimas, abandonando-as à sua sorte, deixando perpetuar o seu martírio. Tolerar é aceitar aquilo que se poderia condenar, é deixar fazer o que se poderia impedir ou combater.
A tolerância vale apenas contra si e a favor de outrem. Não existe tolerância quando nada temos a perder, e menos ainda quando temos tudo a ganhar, suportando, ou seja, nada fazendo. “Todos nós temos força suficiente”, dizia La Rochefoucauld, “para suportar os males dos outros”. Tolerar o sofrimento dos outros, a injustiça de que não somos vítimas, o horror que nos poupa não é tolerância, mas egoísmo, indiferença, ou mesmo pior.
“Se formos de uma tolerância absoluta, mesmo com os intolerantes, e não defendermos a sociedade tolerante contra os seus assaltos, os tolerantes serão aniquilados e com eles a tolerância”. Isto só vale enquanto a humanidade é aquilo que é, conflituosa, passional, dilacerada, mas por (Publicado em freemason.pt) isso mesmo tem valor. Uma sociedade onde fosse possível uma tolerância universal deixaria de ser humana e, de resto, não precisaria de tolerância.
Ao contrário do amor e da generosidade, que não têm limites intrínsecos, nem finitude que não a nossa, a tolerância é, por conseguinte, essencialmente limitada: uma tolerância infinita seria o fim da tolerância! Não existe liberdade para os inimigos da liberdade? Não é assim tão simples. Uma virtude não poderia acantonar-se na intersubjectividade virtuosa: aquele que só com os justos é justo, só com os generosos, generoso, só com os misericordiosos, misericordioso, não é nem justo, nem generoso, nem misericordioso. Tão-pouco é tolerante aquele que o é apenas com os tolerantes. Se a tolerância é uma virtude, como creio e como todos pensam de modo geral, ela vale portanto por si mesma, inclusivamente para os que não a praticam. A moral não é nem um negócio nem um espelho. É verdade que os intolerantes não poderiam queixar-se, se fôssemos intolerantes com eles. Mas onde se viu que uma virtude dependa do ponto de vista dos que a desconhecem? O justo deve ser guiado pelos princípios da justiça, e não pelo facto de o injusto poder queixar-se”. Assim também o tolerante, pelos princípios da tolerância. Se não devemos tolerar tudo, porque seria votar a tolerância à perdição, tão-pouco devíamos renunciar a toda a tolerância para com aqueles que não a respeitam. Depende dos casos, e esta “casuística da tolerância”, como diz Jankélévitch, é um dos grandes problemas das nossas democracias. Depois de termos evocado o paradoxo da tolerância, que faz que enfraqueçamos à força de querer estendê-la indefinidamente, Karl Popper acrescenta:
“Não quero com isto dizer que seja sempre necessário impedir a expressão de teorias intolerantes. Enquanto fosse possível contrariá-las à força de argumentos lógicos e contê-las com a ajuda da opinião pública, seria um erro proibi-las. Mas é necessário reivindicar o direito de fazê-lo, mesmo à força, caso se torne necessário, porque pode muito bem acontecer que os defensores destas teorias se recusem a qualquer discussão lógica e respondam aos argumentos pela violência. Haveria então que considerar que, ao fazê-lo, eles se colocam fora da lei e que a incitação à intolerância é tão criminosa como, por exemplo, a incitação ao assassínio”.
Democracia não é fraqueza. Tolerância não é passividade.
Moralmente condenável e politicamente condenada, uma tolerância universal não seria, portanto, nem virtuosa nem viável. Ou por outras palavras: existem, de facto, coisas intoleráveis, mesmo e sobretudo para o tolerante! Moralmente, é o sofrimento de outrem, a injustiça, a opressão, quando poderiam ser impedidos ou combatidos por um mal menor. Politicamente, é tudo o que ameaça efectivamente a liberdade, a paz ou a sobrevivência de uma sociedade e, portanto, é também tudo o que ameaça a tolerância, quando esta ameaça não é a simples expressão de uma posição ideológica (a qual poderia ser tolerada), mas de um perigo real (que deve ser combatido e à força, se necessário). Isto deixa lugar à casuística, no melhor dos casos, e à má-fé, no pior, deixa lugar à democracia, com os seus riscos e as suas incertezas, que contudo valem mais que o conforto e as certezas do totalitarismo.
O certo é que a questão da tolerância, que durante muito tempo não foi mais do que uma questão religiosa, tende a invadir o todo da vida social, ou melhor, porque é certamente a inversa que se deve dizer, eis que o sectarismo, de religioso que começou por ser, se torna no século XXI omnipresente e multiforme, desta vez sob o domínio da política bem mais do que da religião: daí o terrorismo, quando o sectarismo está na oposição, ou o totalitarismo, quando no poder. Talvez um dia possamos sair desta história, que é a nossa, mas nunca sairemos da intolerância, do fanatismo, do dogmatismo. Eles renascem sempre, a cada “verdade” nova. O que é a tolerância? Respondia Alain: “Um género de sabedoria que vence o fanatismo, esse temível amor da verdade.”
“Tolerar não é, evidentemente, um ideal”, observava já Abauzit, “não é um máximo, mas um mínimo”. Claro, mas é melhor que nada ou que o seu contrário! – Que o respeito ou o amor valem mais, é evidente. Se, contudo, a palavra tolerância se impôs, foi certamente porque nos sentimos muito pouco capazes de amor ou de respeito quando se trata dos nossos adversários – ora, é, em primeiro lugar, para eles que a tolerância é necessária… “Enquanto não desponta o belo dia em que a tolerância se tornará amável”, conclui Jankélévitch, “diremos que a tolerância, a prosaica tolerância é o que de melhor podemos fazer! A tolerância – por muito pouco exaltante que seja a palavra – é pois uma solução sofrível; entretanto, ou seja, até que os homens possam amar, ou simplesmente conhecer-se e compreender-se, podemos dar-nos por felizes por começarem a suportar-se. A tolerância, portanto, é um momento provisório”. Que este provisório está para durar, é bem claro: e, se cessasse, seria de temer que lhe sucedesse a barbárie, e não o amor! Pequena virtude, também, a tolerância tem talvez na vida colectiva o mesmo papel que a polidez na vida interpessoal: é apenas um começo, mas já é algum.
Sem contar que é por vezes necessário tolerar o que não queremos nem respeitar nem amar. O desrespeito não é sempre uma falta, longe disso, e alguns ódios estão bem perto de ser virtudes. Existem, como vemos todos os dias, coisas intoleráveis que temos de combater. Mas também coisas toleráveis que são, no entanto, desprezíveis e detestáveis. A tolerância diz tudo isto, ou pelo menos autoriza-o. Esta pequena virtude convém-nos: está ao nosso alcance, o que não é assim tão frequente, e parece-nos que alguns dos nossos adversários não merecem mais…
Assim como a simplicidade é a virtude dos sábios e a sabedoria a dos santos, a tolerância é sabedoria e virtude para aqueles – todos nós – que não são nem uma nem outra coisa.
A. Rocha
Bibliografia
- Rodrigues, Filosofia da Maçonaria Simbólica, Ed. A Trolha
- J. Rodríguez-Rosado, La aventura de existir, Pamplona, Eunsa, 1976.
- The Oxford English Dictionary [em CD-ROM] Oxford : Oxford Univ. Press, 1992
- Alain, Les arts et les dieux, p. 1095 (definição da tolerância).
- João Paulo II, Verítatis splendor, Mame/Plon, 1993, p. 95.
- Abauzit, Vocabulaire de Lalande, p. 1134.
- Jankélévitch, Traité des vertus, II, 2, p. 92 da ed. Champs-Flammarion (1986).
- Rawls, Teoria da Justiça, II, 4, secção 35, p. 256 da trad. franc., Seuil, 1987
Fonte: freemason.pt
Comentários