Uma das características do ser humano é a pesquisa permanente da verdade. O desejo de comprovar a veracidade dos factos e de distinguir o verdadeiro do falso é o que frequentemente nos coloca dúvidas no que nos foi ensinado. A procura pela verdade surge logo na infância e ao longo da vida, estamos permanentemente a questionar as verdades estabelecidas pela sociedade. O desejo de desvelar a verdade deve-se à aspiração de fundar um conhecimento seguro acerca do mundo e das coisas.
Procura-se uma base estável – a verdade – que permita uma relação de confiança, absolutamente necessária, entre o homem e aquilo que deseja conhecer. Quando se vê confrontado com este impulso, o homem questiona-se sobre o que é a verdade, que num certo sentido será aquilo que efectua a ligação entre si e as coisas.
Porventura, ao longo dos séculos, a verdade foi construída a partir de três concepções diferentes, vindas da língua grega, da latina e da hebraica.
Em grego aletheia, a verdade é aquilo que não foi oculto, aquilo que não foi escondido ou mesmo dissimulado por alguém. O verdadeiro é o que se manifesta aos olhos do corpo e do espírito, a verdade é a manifestação daquilo que é ou existe tal como é. O verdadeiro é o evidente ou o plenamente visível para a razão. Assim, a verdade é uma qualidade das próprias coisas e o verdadeiro está nas próprias coisas. Conhecer é ver e dizer a verdade que está na própria realidade e, portanto, a verdade depende da manifestação da realidade, enquanto a falsidade depende da dissimulação em aparências.
Em latim, verdade diz-se veritas e refere-se à precisão, ao rigor e à exactidão de um relato, no qual se diz com detalhes, pormenores e fidelidade o que aconteceu. Verdadeiro refere-se à linguagem enquanto narrativa de factos acontecidos. Um relato é autêntico ou dotado de veracidade quando a linguagem enuncia os factos reais. A verdade depende da veracidade, da memória e da acuidade mental de quem fala e de que o enunciado corresponda aos factos acontecidos. O oposto é a mentira ou a deturpação. As coisas e os factos não são reais ou imaginários, os relatos enunciados sobre eles é que são verdadeiros ou falsos.
Em hebraico verdade diz-se emunah e significa confiança. Agora são as pessoas e é Deus quem são verdadeiros. Um Deus verdadeiro ou um amigo verdadeiro são aqueles que cumprem o que prometem, são fiéis à palavra dada ou a um pacto feito, não traem a confiança. A verdade relaciona- se com a presença, com a espera de que aquilo que foi prometido ou estipulado irá cumprir-se ou acontecer. A verdade é uma crença fundada na esperança e na confiança, referidas ao futuro, ao que será ou virá. A forma mais elevada é a revelação divina e a expressão mais perfeita é a profecia.
Desta forma podemos admitir que a verdade é uma síntese destas três fontes e por isso refere-se às coisas presentes e à própria realidade (aletheia), aos factos passados e à linguagem (veritas) e às coisas futuras, à confiança e esperança (emunah).
Ao longo da história, e de acordo com as mudanças na estrutura e organização das sociedades, foram surgindo várias concepções da verdade.
Nas sociedades antigas, baseadas no trabalho escravo, a ideia da verdade como utilidade e eficácia prática não poderia surgir, pois a verdade era considerada a forma superior do espírito humano, desligada do trabalho e das técnicas e tomada como um valor autónomo do conhecimento enquanto pura contemplação da realidade, isto é, como teoria.
Nas sociedades nascidas com o capitalismo, em que o trabalho escravo e servil é substituído pelo trabalho livre e em que é elaborada a ideia de indivíduo como um átomo social, isto é, como um ser que pode ser conhecido e pensado por si mesmo e sem os outros, a verdade tenderá a ser concebida como dependendo exclusivamente das operações do sujeito do conhecimento ou da consciência de si reflexiva autónoma.
Também nas sociedades capitalistas, regidas pelo princípio do crescimento ou acumulação do capital por meio do crescimento das forças produtivas (trabalho e técnicas) e por meio do aumento da capacidade industrial para dominar e controlar as forças da Natureza e a sociedade, a verdade tenderá a aparecer como utilidade e eficácia, ou seja, como algo que tenha uso prático e verificável. Assim como o trabalho deve produzir lucro, também o conhecimento deve produzir resultados úteis. Numa sociedade altamente tecnológica, como a do século XX ocidental europeu e norte-americano, em que as investigações científicas tendem a criar nos laboratórios o próprio objecto do conhecimento, isto é, em que o objecto do conhecimento é uma construção do pensamento científico produzido pelas teorias e pelas experimentações, a verdade tende a ser considerada a forma lógica e coerente assumida pela própria teoria, bem como a ser considerada como o consenso teórico estabelecido entre os membros da comunidade de investigadores.
Também as transformações internas à própria Filosofia modificam a concepção da verdade. A teoria da verdade como correspondência entre coisa e ideia, ou facto e ideia, liga-se à concepção realista da razão e do conhecimento, isto é, à prioridade do objecto do conhecimento, ou realidade, sobre o sujeito do conhecimento. Ao contrário, a concepção da verdade como coerência interna e lógica das ideias ou dos conceitos liga-se à concepção idealista da razão e do conhecimento, isto é, à prioridade do sujeito do conhecimento ou do pensamento sobre o objecto a ser conhecido.
Em Fevereiro de 1967, a genial filósofa judia de origem alemã Hannah Arendt publicou um texto (na The New Yorker) paradigmático sobre o tema, intitulado “Verdade e Política”.
Na sua exposição, Hannah Arendt defende que a natureza da verdade é essencialmente política, ou seja, “é sempre relativa a várias pessoas e diz respeito a acontecimentos e circunstâncias nos quais muitos estiveram implicados. É estabelecida por testemunhas e repousa em testemunhos, existe apenas na medida em que se fala dela, mesmo que se passe em privado”. Se a verdade é essencialmente política ela pode ser ameaçada pelas mentiras estratégicas dos poderosos e precisa continuamente de ser defendida e conquistada com o máximo de interpelações e debates públicos.
O mais relevante no texto de Hannah Arendt, para alem da tensão estrutural entre verdade e política, é a mudança no modo clássico e contemporâneo do uso da mentira na disputa pelo poder. A mentira clássica era dirigida estrategicamente para este ou aquele grupo de inimigos e por isso poderia ser facilmente detectada pelos historiadores.
A contemporaneidade é marcada por uma forma de “mentira organizada”, uma aliança entre os meios de comunicação e os regimes totalitários, onde toda a matriz da realidade pode ser falsificada através das estratégias mediáticas de manipulação em massa. O resultado não é apenas a substituição da verdade pela mentira, mas a paulatina destruição na crença em qualquer sentido que nos oriente pelo mundo. A mentira organizada contemporânea conduz a um cinismo niilista, uma recusa em acreditar na verdade de qualquer coisa. A descrença é a desistência da tarefa de fazer qualquer avaliação.
Porventura, o melhor auxílio para combater as falsidades não são as estratégias, mas as pessoas. Pessoas que, livres da ambição, estão prontas a ouvir e, através de um diálogo sincero, deixam emergir a verdade. Pessoas que, atraídas pelo bem, revelam-se responsáveis no uso da linguagem. Actualmente, o jornalista, “guardião das notícias” não deve desempenhar apenas uma profissão, mas uma verdadeira e própria missão. Numa azáfama de notícias e obstinado em ser o primeiro a comunicar, tem o dever de considerar que, na essência da notícia, não estão a velocidade em comunicá-la nem o impacto sobre a audiência, mas as pessoas.
Numa visão cristã, a verdade não é uma realidade apenas conceptual, que diz respeito ao juízo sobre as coisas, definindo-as verdadeiras ou falsas. A verdade é aquilo sobre o qual nos podemos apoiar para não cair. Neste sentido relacional, o único verdadeiramente fiável e digno de confiança sobre o qual se pode contar, ou seja, o único “verdadeiro” é o Deus vivo. Eis a afirmação de Jesus: “Eu sou a verdade”. “Fake news e jornalismo de paz” – Mensagem do Papa Francisco para o dia das comunicações).
O conhecimento não deve ser ideologia, não deve ser máscara e véu para dissimular e ocultar a realidade servindo os interesses da exploração e do domínio entre os homens. Assim como a verdade exige a liberdade de pensamento para o conhecimento, também exige que os seus frutos propiciem a liberdade de todos e a emancipação de todos.
A verdade deve ser objectiva, isto é, deve ser compreendida e aceite universal e necessariamente, sem que isso signifique que ela seja “neutra” ou “imparcial”, pois o sujeito do conhecimento está vitalmente envolvido na actividade do conhecimento e o conhecimento adquirido pode resultar em mudanças que afectem a realidade natural, social e cultural.
“O homem que mente para si mesmo e escuta as próprias mentiras chega a um ponto em que não pode distinguir a verdade e a mentira dentro de si ou ao redor de si, e assim perde todo o respeito por si mesmo e pelos outros”
(Dostoiévski, em Irmãos Karamazov).
De acordo com o pensamento dos filósofos Jean Paul Sartre e Maurice Merleau Ponty,
“somos “seres em situação” e a verdade está sempre situada nas condições objectivas em que foi alcançada e está sempre voltada para compreender e interpretar a situação na qual nasceu e à qual volta para trazer transformações. Não escolhemos o país, a data, a família e a classe social em que nascemos – essa é a nossa condição -, mas podemos escolher o que fazer com isso, conhecendo a nossa situação e perscrutar se merece ou não ser mantida”.
Um importante texto de Blaise Pascal mostra-nos a fragilidade e a força do desejo do verdadeiro.
“O homem é apenas um caniço, o mais fraco da natureza; mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para o aniquilar: um vapor, uma gota de água, bastam para o matar. Mas quando o universo o aniquilasse o homem seria ainda mais nobre do que quem o mata, porque sabe que morre, e a superioridade que o universo tem sobre ele; o universo não sabe nada disso.
Toda a nossa dignidade consiste no pensamento. É daí que deveremos elevar-nos e não do espaço e do tempo, que não poderíamos preencher. Esforcemo-nos pois por pensar bem: eis o princípio da moral “.
A verdade exige que nos libertemos da aparência das coisas e da ilusão dos nossos órgãos dos sentidos. A verdade é o conhecimento da essência real e profunda dos seres e por isso universal e necessária, enquanto que as opiniões variam de lugar para lugar, de época para época, de sociedade para sociedade e de pessoa para pessoa. Essa variabilidade e inconstância das opiniões provam que a essência das pessoas ainda não está perfeitamente conhecida e se continuarmos no plano dos sentidos, dificilmente alcançaremos a verdade.
A verdade é, ao mesmo tempo, frágil e poderosa. Frágil porque os poderes estabelecidos podem destruí-la, assim como mudanças teóricas podem substituí-la por outra. Poderosa, porque a exigência do verdadeiro é o que dá sentido à existência humana.
A verdade, como a razão, está na História e é histórica.
Tomás de Aquino (nome simbólico)
R∴ L∴ José Bonifácio de Andrada e Silva, nº 108 (GLLP / GLRP)
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- A verdade vos tornará livres “Fake news e jornalismo de paz” – Mensagem do Papa Francisco para o dia das comunicações.
Fonte: freemason.pt
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