A transformação do profissional da construção em filósofo, representado pela passagem do operativo para o especulativo, não eliminou a sacralidade do oficio do Maçon, como dizia René Guénon, ao criticar a admissão dos “maçons aceitos” nas Lojas dos pedreiros livres. Apenas fez com que ele deixasse de ser um pedreiro profissional para transformar-se num pedreiro moral. O Maçon deixou de construir igrejas, mosteiros, castelos, fortificações, passando a realizar obra de interesse espiritual e social, muitas das quais deixaram a sua marca na história. A técnica operativa transmutou-se em actividade do espírito. Seguiu, como toda disciplina que se inscreve no domínio da sabedoria epistémica, o caminho comum de todas as conquistas da mente humana.
É que toda disciplina cientifica tem a sua génese numa técnica, praticada empiricamente, tendo como guias apenas a sensibilidade e a habilidade do artesão. Depois, quando submetida ao crivo da razão, ela é organizada e ganha uma epistemologia própria, um método de estudo, incorporando-se ao conhecimento humano como conquista do saber. E da mesma forma que todo conhecimento cientifico é uma conquista do espírito, é possível justificar também que a passagem da Maçonaria do plano operativo para o especulativo representou uma verdadeira evolução em termos de cultura humana, pois se antes o Maçon construía edifícios como mera operacionalização de uma imagem mental, a partir do momento em que a Maçonaria Real organizou-se como disciplina de aperfeiçoamento moral e espiritual do individuo, ela ganhou status de filosofia, tratando não apenas da ciência da construção de edifícios físicos, mas agora também para erguer algo muito mais importante: o edifício moral da humanidade.
A noção de que a técnica sempre precede à ciência é uma ideia de certa forma constrangedora para muitos cientistas que pensam estar realizando descobertas originais com as suas experiências de laboratório, ou para os pensadores que reivindicam a primazia na construção de grandes sistemas de pensamento. Muitas vezes, o que a ciência prova ser impossível, a tentativa pura e simples do técnico acaba desmentindo. Pawels e Bergier nos dão alguns exemplos interessantes desta inversão. “Na nossa opinião” dizem aqueles autores, “ a técnica não é deforma alguma a aplicação prática da ciência. Muito pelo contrário, ela desenvolve-se contra a ciência. O eminente matemático e astrónomo Simon Newcomb demonstra que aquilo que é mais pesado que o ar não teria possibilidades de voar. Dois mecânicos de bicicletas provar-lhe-ão o contrário. Rutherford- Millikan, provam que jamais será possível explorar as reservas de energia do núcleo atómico. A bomba de Hiroxima explode. A ciência ensina que uma massa de ar homogénea não se pode dividir em ar quente e frio. Hilsh demonstra que basta fazer circular esta massa através de um tubo apropriado. A ciência coloca barreiras de impossibilidades. O engenheiro, da mesma forma que o mágico sob o olhar do explorador cartesiano, transpõe as barreiras por meio de um fenómeno análogo ao que os físicos chamam o “ efeito do túnel” [1].
Desta forma, o que chamamos de filosofia, ou ciência, talvez seja apenas a especulação sobre a operação. Ou como dizem Bandler e Grinder: primeiro aprendemos a fazer. Depois tentamos compreender como fazemos [2].
Da arte à filosofia
De certa forma, podemos pensar que a Maçonaria seguiu exactamente este processo. A partir das técnicas de construção, homens sensíveis, de espírito mais religioso que cientifico, perceberam a possibilidade de uma ascese espiritual mais facilmente realizável através das técnicas do seu oficio do que pela prática ritualística de uma liturgia religiosa. Quando a prática operativa, pura e simples, perdeu o seu mercado, face à própria evolução das técnicas de construção, o exercício da Maçonaria operativa deixou os canteiros de obras para refugiar-se nas sociedades de pensamento. O técnico tornou-se filósofo pela descoberta de que o seu conhecimento das construções no plano físico podia ser utilizado para realizar construções espirituais. Passando do concreto para o abstracto, a técnica internalizou-se, transformando-se numa disciplina especulativa.
E neste sentido, a arte de construir um simulacro do universo no plano físico, que eram os grandes edifícios religiosos, passou a ser a arte de construir este simulacro dentro do próprio homem e, por extensão, na suas sociedades. Pode-se dizer que a Maçonaria, que antes operava apenas num domínio laico-religioso, passou a operar depois num domínio mais amplo, que integrava a moral, a psicologia, a sociologia e a política, embora o objectivo da prática maçónica continuasse a ser o mesmo, ou seja, realizar a ascese espiritual do praticante. Num certo sentido, o que antes era uma técnica operativa passou a constituir-se numa ciência do espírito.
A conexão Rosa-Cruz
Um dos mais importantes trabalhos de Carl Gustav Jung tem por tema exactamente a alquimia. Nesta obra, o famoso psicanalista suíço desenvolve a noção dos arquétipos, fazendo uma ponte entre o delírio alquímico e as ansiedades do inconsciente humano para alcançar a realização dos seus sonhos. Para Jung, a alquimia era uma técnica que procurava desenvolver, operativamente, o mesmo processo que se desenvolve no inconsciente humano, para dar origem às suas crenças e sentimentos à respeito do mundo espiritual. Com este trabalho ele estabeleceu um elo entre o pensamento mágico e a ciência psicológica, mostrando que existe uma clara interacção entre os dois domínios cerebrais, que só podem ser estudados em conjunto.
Desta forma, a arte dos “filhos de Hermes”, como tais eram chamados os alquimistas, provinha de um conjunto de conceitos universais, compartilhados pelo Inconsciente Colectivo da humanidade, pois fundamentava-se em mitos, símbolos, alegorias e sensibilidades compartilhadas desde sempre pelo psiquismo da espécie humana, e que se revelava em sonhos, intuições, crenças, superstições e folclores, muitas vezes inexplicáveis pelo crivo da razão, mas muito fortes nas bases estruturais do nosso espírito.
A alquimia era a arte das transmutações. Através da manipulação de certo tipo de matéria prima os alquimistas queriam descobrir o segredo que permitia à natureza realizar a transformação física dos metais. Daí a alquimia ficar conhecida como a técnica de realizar a transmutação de metais comuns, como o estanho e o chumbo, em ouro. Ao mesmo tempo, o operador alquímico, ao penetrar na intimidade da natureza e desvelar os seus segredos, ia também adquirindo uma consciência superior que lhe proporcionava uma elevação espiritual ao nível de uma experiência transcendental.
Esta era, exactamente, a esperança dos fundadores da chamada fraternidade dos Rosa-Cruzes, grupo de pensadores herméticos que em fins do século XVI e início do século XVII causaram um grande comoção nas estruturas do pensamento ocidental com asnsuas construções especulativas utópicas, fundamentadas no saber alquímico. [3] Serge Hutin, escrevendo sobre estes místicos filósofos da utopia alquímica , diz que “eles constituem a colectividade dos seres elevados ao estado superior à humanidade vulgar, possuindo desta forma os mesmos caracteres interiores que lhes permitem reconhecer-se entre si” [4].
Invocamos estas manifestações porque as reconhecemos aplicáveis à Maçonaria. A ideia de uma sociedade internacional, circunscrita a alguns homens puros e de bons costumes, ligados pelo amor à virtude e a beleza, transformados pela prática iniciática, é exactamente a pregação de todos os filósofos maçons. A ciência maçónica, tal como a alquimia, também é a ciência das transmutações. Ela permite a transformação do próprio espírito do iniciado no sentido de se atingir uma etapa mais desenvolvida, seja no terreno da moralidade exotérica, seja no domínio da plenitude espiritual, esotérica.
Esta transmutação, a nível filosófico, é a mesma experimentada pelo alquimista, na sua busca pela pedra filosofal, ou pelo cientista moderno na sua procura por uma explicação racional dos fenómenos da natureza. Como dizem Pawels e Bergier,
“estamos numa época em que a ciência, no seu termo máximo, atinge o universo espiritual e transforma o espirito do próprio observador, situando-o num nível diferente do da inteligência cientifica, tornada insuficiente. Aquilo que acontece nos corações dos nossos atomistas é comparável à experiência descrita pelos textos alquímicos e pela tradição rosa-cruz” [5]
E nós completamos: é o que acontece no espírito do Maçon que realmente compreendeu o valor e a finalidade da sua Arte. Assim, se para os alquimistas o corolário da sua obra era a pedra filosofal, para o Maçon, a pedra filosofal é o seu próprio espírito aperfeiçoado. Completa-se, desta forma, o processo que faz do espírito do Maçon a sua própria obra de arte. Por isso a Maçonaria é chamada de Arte Real.
João Anatolino Rodrigues
Notas
[1] Pawels e Bergier – o Despertar dos Mágicos, pg. 66/67
[2] Referência a um pressuposto da neurolinguística, técnica que procura demonstrar como são gerados, no nosso sistema neurológico, os nossos comportamentos, as nossas escolhas e crenças. Esta técnica foi desenvolvida pelos professores americanos Richard Bandler e John Grinder, da Universidade de Palo Alto, Califórnia.
[3] Vide, a este respeito, Giordano Bruno e a Tradição Iniciática e O Iluminismo Rosa-Cruz, de Frances Yates, citado. Francis Bacon, filósofo e alquimista inglês, (1561 — 1626) é tido como o fundador da ciência moderna. A sua filosofia pregava o exercício da ciência em favor do progresso da humanidade. A sua principal obra filosófica, “Novum Organum“ é considerada urna das principais influências para o movimento intelectual que resultou na Maçonaria moderna. Foi participante activo do movimento Rosa-Cruz
[4] Serge Hutin . Historia da Alquimia. São Paulo, Cultrix, 1987.
[5] Idem, pg. 53
Fonte: freemason.pt
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